Do pó...
“Nós não somos nada nesse mundo”; é o que ouço muito quando se comenta a morte de alguém. A vida é uma velinha acesa, penso. Algumas chamas rendem mais, outras menos. Às vezes pensamos que vão se extinguir com o vento que está soprando, mas resistem; outras vezes elas simplesmente diminuem, diminuem, ficam azulzinhas e se apagam, sem qualquer força externa. Viver é assim, também como um jogo de sinuca... as pessoas são como as bolas; no meio da corrida esbarram umas nas outras, afetam o caminho das outras e, sem menos esperar, lá está ela, a bola, dentro da caçapa. As pessoas são assim. Morrer é assim. Mesmo sabendo que do processo de viver a morte faz parte, insistimos em não aceitar, em não querer, em temer.
É humana a capacidade de espiritualizar tudo – desde a roupa íntima, passando pelos pequenos acontecimentos cotidianos (aos quais se atribuem qualidades místicas, como sinais do além), até nossa relação tão intensa com as pessoas que já se foram. Racionalizar o viver é irracional (achei a frase!). Racionalizar o viver é irracional. Praticamente nenhum aspecto da sua vida não estará intrinsecamente ligado a fatores emocionais e espirituais.
É humano o prazer do “apegamento”, do não-abandono. Morrer representa o contrário a todas as leis naturais do acompanhamento, das promessas, dos planos, de futuro. Aí se atribui à morte o caráter transicional – a crença de outra dimensão, de um universo paralelo, de um outro contexto, já que materialmente falando não existe nada, só o que é etéreo e a eternidade. As religiões orientais enfrentam a morte como mais uma fase no processo evolutivo do indivíduo. A morte é como o próximo estágio, dá pra sacar? Não vemos mais a pessoa, mas sabemos que já foi pra “lá”. Mais ou menos assim. Já as ocidentais, ainda atadas ao “carne-a-carne”, inspiram no homem o sentimento da falta, da solidão, da desolação, da dor da partida.
Estou querendo chegar na visita que fiz ao cemitério no último dia de Finados. Ao todo fui à casa dos mortos 4 vezes no mesmo dia. É cidade de interior, e creio que nessas é bem mais forte a ligação terrena ao além, é maior o apego àqueles que já se foram. Duas vezes para colocar rosas e acender velas e duas vezes para acompanhar alguém e perceber um monte de coisas.
Os “viventes” têm espírito pobre – e burro. Ao fim do dia percebi que os arranjos que eu tinha colocado nos túmulos dos meus parentes tinham sumido: para outros túmulos. Se as pessoas têm o raciocínio de que “os mortos tudo vêem, tudo sentem e tudo lhes afeta”, por que roubar flores que foram oferecidas a outrem? E ainda tem gente que tem medo de assombração. Ainda sou daquelas pessoas de cabeça dura que pensam que a maioria das nossas ações se baseia na consciência. Cresci aprendendo que, quando voltamos do cemitério, temos que tomar banho, para espantar a morte do nosso corpo, já que a poeira do que não é mais vivo está nas roupas que usamos. Fico imaginando esse pessoal de duas gerações atrás quando soubessem do ciclo do carbono que a gente aprende em Biologia; iam surtar, se rasgar, espernear, e nunca aceitariam que aquele carbono do pedacinho de pele ali do seu braço poderia ter pertencido a alguém que viveu em 385 a.C. lá no Egito. “Do pó vieste, ao pó voltarás”.
Com licença da palavra, o cemitério estava belamente iluminado lá pelas 18 horas. Quão mais bem-quista uma pessoa é, mais velas e mais rosas ela tem. Isso também se aplica ao tempo que decorreu de sua passagem e dos conflitos emocionais por que passaram as pessoas que ficaram. Uma cova lá estava quase pegando fogo de tanta vela e tanta cera derretida pelo chão. Cemitério cheio é aquela coisa! É túmulo colado com outro de um jeito que às vezes a gente tem que passar por cima de alguns... e eu ia passando e pedindo desculpas àqueles em quem pisava enquanto procurava uns jazigos. Não tinha luz elétrica suficiente para iluminar uma noite comum, mas era tanta vela acesa dava para ver bem o caminho, tomando cuidado para não queimar a barra da alça nem o solado das chinelas. Quem morreu há poucos dias tinha velas, fumaça, flores artificiais, naturais e muita gente chorando feito criança ao seu redor. Os outros, que já passaram pelo tempo que já permitiu às famílias conviver com a falta tinham algumas mensagens impressas deixadas perto de suas fotos, já tinham sido visitados, já “saqueados” floristicamente falando, já tinham sido pingadas suas lágrimas cabíveis, merecidas e justas. E, nas últimas visitas, depois de terminarmos o objetivo daquela visita de flores e velas, fomos ver os jazigos mais antigos – aqueles de que ninguém mais lembra, que ninguém jamais conheceu ou para quem jamais rezou. Os mais antigos, por terem recebido já pelas décadas várias demãos de tinta, não tinham mais nem data ou nomes. Contêm o “pó”.
Não acho que deve ser a conotação de obscuridade que o cemitério deve receber quando se fala em morte: a escuridão, o além, o mal, o desconhecido. É ali que milênios e séculos dos valores sociais, culturas, tradições e história se depositam. É no cemitério que está o que não deve ser, jamais, esquecido, nem obscurecido, nem temido. É lá que estão os motivos de viver de gente de agora, de seus pais, irmãos, amigos, ou simplesmente pessoas que pisaram no mesmo centímetro quadrado que você pisa, há dezenas de anos atrás.
“E agora?”; “por que fez isso comigo?”; “meu Deus, por quê?”. Por quê? A falta acostuma as pessoas à dor da vaziez. E talvez esse tenha sido o dia de Finados em que aprendi mais.
É humana a capacidade de espiritualizar tudo – desde a roupa íntima, passando pelos pequenos acontecimentos cotidianos (aos quais se atribuem qualidades místicas, como sinais do além), até nossa relação tão intensa com as pessoas que já se foram. Racionalizar o viver é irracional (achei a frase!). Racionalizar o viver é irracional. Praticamente nenhum aspecto da sua vida não estará intrinsecamente ligado a fatores emocionais e espirituais.
É humano o prazer do “apegamento”, do não-abandono. Morrer representa o contrário a todas as leis naturais do acompanhamento, das promessas, dos planos, de futuro. Aí se atribui à morte o caráter transicional – a crença de outra dimensão, de um universo paralelo, de um outro contexto, já que materialmente falando não existe nada, só o que é etéreo e a eternidade. As religiões orientais enfrentam a morte como mais uma fase no processo evolutivo do indivíduo. A morte é como o próximo estágio, dá pra sacar? Não vemos mais a pessoa, mas sabemos que já foi pra “lá”. Mais ou menos assim. Já as ocidentais, ainda atadas ao “carne-a-carne”, inspiram no homem o sentimento da falta, da solidão, da desolação, da dor da partida.
Estou querendo chegar na visita que fiz ao cemitério no último dia de Finados. Ao todo fui à casa dos mortos 4 vezes no mesmo dia. É cidade de interior, e creio que nessas é bem mais forte a ligação terrena ao além, é maior o apego àqueles que já se foram. Duas vezes para colocar rosas e acender velas e duas vezes para acompanhar alguém e perceber um monte de coisas.
Os “viventes” têm espírito pobre – e burro. Ao fim do dia percebi que os arranjos que eu tinha colocado nos túmulos dos meus parentes tinham sumido: para outros túmulos. Se as pessoas têm o raciocínio de que “os mortos tudo vêem, tudo sentem e tudo lhes afeta”, por que roubar flores que foram oferecidas a outrem? E ainda tem gente que tem medo de assombração. Ainda sou daquelas pessoas de cabeça dura que pensam que a maioria das nossas ações se baseia na consciência. Cresci aprendendo que, quando voltamos do cemitério, temos que tomar banho, para espantar a morte do nosso corpo, já que a poeira do que não é mais vivo está nas roupas que usamos. Fico imaginando esse pessoal de duas gerações atrás quando soubessem do ciclo do carbono que a gente aprende em Biologia; iam surtar, se rasgar, espernear, e nunca aceitariam que aquele carbono do pedacinho de pele ali do seu braço poderia ter pertencido a alguém que viveu em 385 a.C. lá no Egito. “Do pó vieste, ao pó voltarás”.
Com licença da palavra, o cemitério estava belamente iluminado lá pelas 18 horas. Quão mais bem-quista uma pessoa é, mais velas e mais rosas ela tem. Isso também se aplica ao tempo que decorreu de sua passagem e dos conflitos emocionais por que passaram as pessoas que ficaram. Uma cova lá estava quase pegando fogo de tanta vela e tanta cera derretida pelo chão. Cemitério cheio é aquela coisa! É túmulo colado com outro de um jeito que às vezes a gente tem que passar por cima de alguns... e eu ia passando e pedindo desculpas àqueles em quem pisava enquanto procurava uns jazigos. Não tinha luz elétrica suficiente para iluminar uma noite comum, mas era tanta vela acesa dava para ver bem o caminho, tomando cuidado para não queimar a barra da alça nem o solado das chinelas. Quem morreu há poucos dias tinha velas, fumaça, flores artificiais, naturais e muita gente chorando feito criança ao seu redor. Os outros, que já passaram pelo tempo que já permitiu às famílias conviver com a falta tinham algumas mensagens impressas deixadas perto de suas fotos, já tinham sido visitados, já “saqueados” floristicamente falando, já tinham sido pingadas suas lágrimas cabíveis, merecidas e justas. E, nas últimas visitas, depois de terminarmos o objetivo daquela visita de flores e velas, fomos ver os jazigos mais antigos – aqueles de que ninguém mais lembra, que ninguém jamais conheceu ou para quem jamais rezou. Os mais antigos, por terem recebido já pelas décadas várias demãos de tinta, não tinham mais nem data ou nomes. Contêm o “pó”.
Não acho que deve ser a conotação de obscuridade que o cemitério deve receber quando se fala em morte: a escuridão, o além, o mal, o desconhecido. É ali que milênios e séculos dos valores sociais, culturas, tradições e história se depositam. É no cemitério que está o que não deve ser, jamais, esquecido, nem obscurecido, nem temido. É lá que estão os motivos de viver de gente de agora, de seus pais, irmãos, amigos, ou simplesmente pessoas que pisaram no mesmo centímetro quadrado que você pisa, há dezenas de anos atrás.
“E agora?”; “por que fez isso comigo?”; “meu Deus, por quê?”. Por quê? A falta acostuma as pessoas à dor da vaziez. E talvez esse tenha sido o dia de Finados em que aprendi mais.
Comentários
=***
E qto a "nitche" pq eu adoro escrever palavras estrangeiras foneticamente, até leio, se vc fizer a minha!
hauhauhauhauha
mas tu faz q curso moça?
=*
Anna
acredita q li td o post imainando uma velinha? fátima motta (pq só poderia ter sido ela) fez uma dinâmica c nossa turma qd estudamos o processo d morte usando velas, cada pessoa c a sua, sendo acesa ao mesmo tempo e cada uma cuidando da sua chama, até q fui uma das útimas a ter a vela quase finda, apagada. dá um desespero qd passa um vento...