Casa dos Trinta - A visita, avisos ou sobre a construção da resiliência na solitude.
Sentada na mesma cadeira na sexta-feira, das rotinas das sextas-feiras, abrindo a carteira de cigarro que fazia anos não fumava. Fazia anos que não fumava. Por que retomaria o hábito agora?
Agora era momento de repensar até as manias que não tinha e novas que poderia adotar, só pra levantar a suspeita de um novo diagnóstico nas visitas ao psiquiatra, coisa que não fazia há tanto tempo - as visitas ao médico. Novos diagnósticos ela cogitava todos os dias.
Tendo perdido os pais na pandemia, perdeu também o prumo. O trabalho com música e escrita ia bem até o ponto em que aulas particulares pagavam adequadamente algumas contas. Tinha vendido um dos carros, preservado o carro antigo do pai, um Chevette, que ele tratava como relíquia. Guardou em casa toda a organização da mãe. O oratório, os panos de cama, mesa e banho organizados em degradê com cheirinho de vetiver, os galhinhos espalhados pelo guarda-roupas. Espalhados por toda sua memória.
Em sendo filha única não tinha passado por toda a burocracia de desfazer cenários que não desejaria - ela desejava mudar de cenário agora? Não. Agora não. Havia mudado as camas, sua cama.
Seguiria sem a companhia constante humana. Mantinha a companhia da alma deles.
Aquela falta que é presença e ocupa todas as cadeiras da mesa na sala de jantar, que parece estar em pé na frente da pia lavando a louça, ou segurando a mangueira regando as inúmeras plantas do jardim do quintal, cultivadas com tanto zelo por tantos anos - como ela cuidaria tão bem delas? Elas morreriam? Ela certamente morreria.
Pensava agora diariamente, quando sentava para tocar alguma de suas peças, exercício diário da música, da mente, dos dedos, dedos hábeis e famintos por entrelace.
As companhias que se permitia eram em saídas breves, rápidos encontros com quem melhor aprouvesse para descarrego da ânsia por não estar sozinha, ao mesmo tempo em que qualquer companhia por um pouco mais de tempo já lhe causava um ranço, um tédio, uma vontade de simplesmente ser só. Tinha dias em que ela só queria um corpo, mesmo. Sendo hábil entre as palavras que saíam da mente e povoavam os dedos, viravam músicas, sons, encadeamentos lógicos, conseguia rápido o prazer. Em braços e corpos amigos.
Tantos eram os interesses por ocupar seu coração e sua vida com constância.
Ela que tinha medo dessa constância. Achava que era impossível alguém ser tão constante a vida inteira.
Tinha medo que ela a viesse visitar nas noites de silêncio e escuridão - a visita. Paradoxal que tivesse medo da visita, mas não quisesse companhia. É como se soubesse que o encontro precisasse acontecer entre as duas.
Ela a tinha visto nas visitas que fizera ao hospital nos dias em que os pais estavam internados. Na loucura da pandemia, corredores cheios, multidões de pessoas paramentadas, ela própria. Um longo corredor, o corredor de espera da UTI. Passava das 23 horas. Havia uma senhora sentada, sozinha. Sem máscara, sem os paramentos de praxe. Por volta dos seus 86 anos, cabelos muito brancos organizados em uma longa trança. Linda face. Ao se aproximar, a idosa lhe abriu um sorriso enorme. Como o de uma velha amiga que há tanto não encontrava. Pareceu-lhe familiar. Mas totalmente incongruente. Naquele lugar, naquele horário, aquela pessoa que nem estava internada, nem se protegendo, parecia entregar vitalidade, leveza e conferia alguma harmonia ao lugar.
Onde não havia contatos físicos, a senhora se levantou da cadeira onde estava e lhe deu um abraço. Longo. Gostoso. Mais tarde ela entendeu o que aquilo significara. Jamais conseguiria colocar em palavras. Seu pai faleceu naquela madrugada - complicações da COVID-19.
Ela já tinha visto aquela senhora na infância. Por isso o sorriso lhe fora tão familiar. Não sabia seu nome. Mas sabia o que ela significava. Ela era a visita conhecida.
Alguns dias depois sua mãe também não resistiu. Ela viu a senhorinha sentada, de longe, num dos canteiros de fora do hospital. Ela lhe fez um aceno.
Então dali voltou para casa sozinha. Chorou sentada no chão do banheiro algumas horas. Adormeceu no chão do corredor, até os gatos e o cachorro lhe acordarem.
Coisa complexa é o luto. Sendo ou não esperado, nunca há tempo suficiente para se preparar. A cerimônia do adeus é sempre o mais íntimo que há - entre adormecer e tomar banho. É se despedir de tantas partes de si, precisando fazer nascer outras partes quebradas, mas resistentes, para continuar seguindo. É uma perda e despedida que acontecem do lado de dentro.
Toda sexta-feira ela senta na mesma cadeira, no mesmo bar, encontra com as mesmas amigas. Para beber algo, para conversar qualquer coisa que não seja estar em casa sozinha - mesmo sendo a solidão o que mais deseje e por isto a psicóloga disse que não deveria. Então hoje ela está sentada, abrindo uma carteira de cigarro, reativando o hábito antigo, sentindo o cheiro familiar, o sabor amargo na boca, mas a sensação de calma que a nicotina confere nos estados ansiosos. Pediu uma dose de tequila. Botou sua melhor roupa, o batom vermelho. Vaidade para si mesma. Prazer para si mesma. Desfrutar das boas companhias e voltar mais tarde para o seu espaço familiar. Só isto.
Sabe o mal do cigarro, todos os riscos que está correndo, os antecedentes familiares - diabetes, hipertensão, câncer - nada dessa consciência é suficiente, porque é o que lhe sobrou para extravasar.
Mas hoje ela só quer ouvir o samba, olhar alguns olhares - reais. Voltar para casa. E seguir. Quando vir aquela senhora novamente, quiçá daqui a algumas semanas ou anos, ela saberá. Por enquanto, sem tantos planos, cobranças - não vai tentar chamá-la nem encontrá-la. Ela que deve vir por si só. A beleza do encontro está no inesperado.
Deixar algumas lágrimas rolarem, alguns corpos se aproximarem. Ir retomando a rotina e o rigor, o vigor e cuidar da saúde novamente. Por enquanto sua dor é só sua.
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