Casa dos Trinta - No quarto de amor

 Sentada na beira da cama, a única iluminação que adentrava o quarto era a penumbra no crepúsculo. Não sabia quantas horas fazia que estava ali, em um bursting de imagens e cenas de momentos passados de vida, parecia vidas passadas. Personagens que pareciam saídos de obras literárias que ocuparam seus espaços, suas cadeiras, sua cama, sua mente.

Nos dias seguintes, já não mais. Era um problema não conseguir se apegar a alguém? Nem estava falando em amar, era apego mesmo, aquele sentimento de possuir, mas não se sentir pertencente. 

Desde que saíra da casa dos pais no interior que a meta era se sobressair com seu trabalho, suas escolhas, seus erros. Alugou um quarto em outra cidade, de aluguel razoável que não comprometesse tanto do salário de contadora. Mas gostava mesmo de compor. Imagens e encadeamento de palavras que viravam cifras que se tornavam melodia nas cordas do violão que havia comprado numa feirinha de bairro de usados.

Todo sábado ela ia para a Paulista à tarde. Levava uma caixa amplificadora, um microfone de qualidade questionável, seu violão e ficava tocando, até o anoitecer. Eventualmente finalizava o dia em algum barzinho da Augusta com algum transeunte que havia conhecido tocando entre olhares e pedidos de músicas. Papo bom, pessoa que parecia íntima a rotinas de higiene... Acabavam tendo um momento no seu apê.

Quando terminava ela ouvia os elogios de praxe, respondia sobre sua tatuagem nas costas, quando perguntada. Dizia "desculpe, não tenho nada para oferecer de lanche, não fiz supermercado esta semana". Depois de um cigarro e uma cerveja, a companhia ia embora.

E ela seguia sentada na beira da cama.

Teve uma ou duas vezes em que ela pegou contatos para conversar e rever os carinhas, tipo aqueles diálogos de Lóri e seu "filósofo" chato em "Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres". Mas que tola, ninguém lê mais Clarice esses dias.

Era essa a falta que ela tinha, de sentir o pertencimento. Em alguém.

Ao mesmo tempo, sentia um imenso prazer em si mesma, por nem precisar explicar porque todo sábado ela carregava uma caixa de som indo e voltando do Metrô no sentido Jabaquara.

Andava por onde queria. Tinha as amigas para conversar, tinha engajado nos exercícios. Aos 34 ela se sentia muito mais segura do que na casa dos 20.

Não precisava se encaixar nos padrões de cabelo. Não precisava explicar a mãe por que fumava.

Não precisava dever satisfação sobre o sexo que fazia, com quem, como e quão bem fazia. Nem precisava criar um pet pra sentir que formava uma família porque tentava estar de casal.

Não sentia tanto a pressão da economia sobre as demandas de imposto de carro, pois carro não tinha. Havia se adaptado tranquilamente ao sistema de transporte da capital em uma rotina que lhe aprazia.

Sentia a falta de pertencimento a outrem? Sim. Ocasionalmente. Alguns diálogos e intimidades viriam a calhar.

Mas ao ganhar liberdade, abrir-se-ia mão de alguns desejos. Ao tentar manter aqueles desejos, perder-se-ia aquela pequena grandiosidade de sua vida hermeticamente fechada e organizada. E em cedendo àqueles desejos, depois outros e outros e outros viriam, pois é o humano um ser desejante.

E ela não queria perder a aventura até chegar ao que os 40 prometiam.


No quarto de amor, este - o amor, é só seu. Por si. E que lhe baste por ora.


Imagem gerada por IA a partir de descrição do texto através do Adobe Express.

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