Dependência
Aqueles momentos de epifania. Ela-eu gostava de ler pessoas.
E, mesmo depois de tanto tempo, aqueles mistérios que nos aparecem para
despertar a curiosidade e a vontade de fazer um pouco diferente naquele
processo de conhecer, de se fazer em casa nas entrelinhas da comunicação entre
pessoas.
Diz-se que em um grupo de pessoas, se algo engraçado é dito,
você tende a seguir o ímpeto da risada e acaba olhando ou orientando inconscientemente
fisicamente seu corpo para a pessoa que mais te interessa naquela multidão.
Multidões. Multidões de pensamentos, de dúvidas, de inseguranças. Mas se você
olha e a pessoa está rindo na mesma intensidade que você, BINGO!, uma dose de
dopamina e serotonina a mais para continuar o dia. Mas se além de rir a reação
inconsciente de orientação do corpo da pessoa for você em reciprocidade, tem o
prazer profundo de se sentir abraçada sem os braços.
E quando são os braços que você procura mas não sabe como
levantá-los para pedir o abraço porque não sabe se ele será devolvido? Quantos
abraços pendentes a gente guarda e quanto significa o sentimento represado. Talvez
se soubesse quantas angústias a gente diminuiria na vida de outrem, a gente
teria abraçado mais. Como se nega abraço? Da mesma forma em que se nega a si
mesmo/a tentando se encontrar naquele “eu” que as pessoas esperam que sejamos e
no final nem sabemos mais que “eus” somos, tanta soma de papeis e de nós a
serem desatados.
A insegurança é aquela coceirinha chata perto do calcanhar
que não passa e que a gente não para de cutucar. Ela gera as mil e duas
perguntas não ditas, não verbalizadas, não escritas, sobre o medo de perder. O
não-dito é sempre mais doloroso que a possibilidade de superar aquela tal
flecha da palavra atirada. Eu atiro perguntas. Atiro olhares, atiro sorrisos.
Na esperança que eles sejam palavras não materializadas, mas inteligíveis.
Nasce a dependência de algo-relacionamento, ou contexto, que
foi antes um plano, depois foi um algo-recíproco, algo-pele, algo-segurança.
Que hoje pode nem mais ser. Pode até nunca nem ter sido, mas eu achei que
fosse. E que pode ser segurança, sim, mas por experiências anteriores a ferida
aberta do “não saber de si” não nos deixa ver com clareza. Preciso da
aprovação, do sim, do sorriso, do abraço, ou da presença, ou do toque, ou da
resposta nos próximos 3 minutos senão não existe nenhum sentido de a conversa
continuar existindo. As amigas que lutem para responder naquela instantaneidade
do quase-telepático. Um algo-místico.
Neste algo-medo, algo-incompletude, algo-insegurança, nascem
os ciúmes, como reflexo
de algo que nos falta ou porque achamos que precisamos controlar e manter
sempre aquilo que nos apraz, seja uma pessoa, seja objeto/posse. É aquela ânsia
por saber o que a outra pessoa está fazendo, com quem está fazendo e por que
não é com você que ela/ele está tendo bons momentos.
O medo de que outra pessoa seja o alvo do afeto que eu investi e dediquei tanto
tempo. Medo de que a pessoa olhe pra outra e saiba aquela comunicação sem
palavras que só a gente tinha. Medo de que aquela nova amizade seja mais
interessante e eu seja apenas uma estranha perfeita. Daquelas que a gente
conheceu muito e significou muito por tanto tempo, mas que hoje não é mais. Que
medo de perder o amor e não ser mais o alvo daquele afeto, daquele olhar, do
melhor abraço.
Os ciúmes fazem perder o sono porque fazem a gente reavaliar a lista das coisas
que já falou mas que hoje soam constrangedoras -, "mas e se ele/a estiver
se divertindo mais e me achar tão insignificante?", "por que se
despediu de mim e continua online?". "Mente para mim sobre
isso?".
Mas e se ela achar uma amiga mais presente do que eu?
Mas e se ele achar uma pessoa que sorria mais do que eu e envolva promessas de
papeis que eu não desempenhei?
Por
que não responde minhas mensagens se já visualizou?
A cor dos ciúmes é azul royal com púrpura. Parece ira, mas é uma carência de
completar uma lacuna que vem lá de trás. Confiança no outro para construir a
confiança de si na vida dos outros. Saber que é a si mesmo(a) que tem a
oferecer nas relações e que isto e o seu maior tesouro. Mas quantas vezes na
vida não derrubamos esse fato e passamos a esperar atenção, afeto, carinho,
cumplicidade, como se fossem brindes, ou favores...
Os ciúmes são o pavor de perder esses brindes.
[I
gave so many signs]
E nem são brindes. Porque tudo o que gira em nossa cabeça nos ciúmes são
construções nossas. Nossas impressões e interpretações de como as pessoas nos
vêem - e que a qualquer momento podem simplesmente ter interesse em outra
coisa.
Só para mim, só comigo, só por mim, só eu. Qualquer outra pessoa pode levar
embora. E eu não aguento mais perdas.
Perder amor faz a gente achar que é nossa culpa, porque não fomos permissivas,
ou não nos abrimos a experimentar mais, ou o que tínhamos a oferecer que era
pífio, desinteressante.
Aí a gente se anula para cumprir as expectativas da outra pessoa. Que afinal de
contas nem tinha mesmo esse interesse.
[… I think I've seen this film before. And I
didn't like the ending. I'm not your problem anymore. So who am I
offending now?]
Na
responsabilidade afetiva conta cada dito. Porque o não-dito enche cômodos,
caixas, armários, sacolas e coração. Para cada pergunta feita, tirar o peso do
medo da resposta a receber. E alguns não-ditos doem mais porque o silêncio da
rejeição e do distanciamento cortam mais do que a palavra clara. Às vezes ela
nem é uma ruptura. Mas a dependência é isso. A necessidade de saber estar certa,
a aprovação, o saber que é aceita, acolhida, não importa quantas outras vozes
habitem aquela sua cabeça.
Sonhos
e planos são plásticos. Eles podem dar luz a outros, podem ser alimentados,
trabalhados, lentamente, como se alimenta um filhotinho guardando nas mãos.
Eles podem ser conversados, devem ser levados com a paciência de quem planta
tâmaras, sabendo que a espera precisa ser tão cuidadosa quanto a criação de
expectativas.
Expectar
que o que fiz renderá o que eu mereço. Mas eu mereço o quê? Tanto? Tão pouco?
Tanto quanto eu dou? O QUE EU DOU nessa responsabilidade afetiva? EU lembro? Eu
lembro de esquecer? O que eu me esforço para lembrar? Lembro que cada pedacinho
da outra pessoa faz parte de todo esse processo de individuação que eu mesma
tenho vivido e que preciso respeitar ESPAÇOS? Limites? Linguagens? Quais as
minhas? O que eu gosto de receber? Como melhor me expresso? Eu estou expressando
o que me desconforta ou apenas dou o conforto para achar que estou sendo
acolhida?
Eu
queria ser tudo o que eu vejo nos outros.
(normalmente
se é tanto um oceano quanto um universo inexplorados, desejados e sonhados, mas
pouco ou quase nada explorados, porque não é todo olhar que consegue penetrar
nas profundidades)
Quero
que dê certo, quero que me aprove. Sorria pra mim, por que não atende minha
ligação? Por que não riu com aquela piada que contei? Será que fui invasiva? Ou
ausente? Desacreditei? Hipervalorizei? Como vou olhar para a cara de novo?
Seria
tão mais fácil que as pessoas soubessem fazer amor com as palavras tão bem quanto
o fazem com o corpo, com a foto e com os editores de imagem. Mesmo as palavras
não ditas, aquelas que ficam por detrás do véu de descobrir, explorar, ler nas
entrelinhas do inclinar o corpo, do olhar acolhedor e apertadinho através da
máscara, do olhar inexpressivo, da palma das mãos para cima quando se conversa,
das pernas descruzadas, da conversa leve, descontraída, do não-medo de apenas
ser parte. Aquele algo-recomeço, algo-relação, algo-plano, algo-descoberta,
algo-alegria.
Quero
mais, tempo, mais abraço, mais aconchego, mais saber olhar, saber estar, saber
falar, saber ser, saber ouvir, saber abraçar, saber abrir, saber mais palavras,
mais gestos, mais sorrisos mais beijos mais caminhos mais estratégias, mais
risadas, mais algo-maturidade.
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