Sobre a capacidade de se pensar como o outro, Ou um conto masculino meio torto PARTE I
Tudo poderia ter acontecido hoje, menos acabar a gasolina do carro bem na hora da chuva, bem no meio da ponte, na volta para casa. Enquanto dirigia só conseguia pensar se ainda tinha aquele uísque que eu gostava dentro da cristaleira, porque quando chegasse em casa, seria o espetáculo da noite: deixar o vinil rodando, tomando da bebida sem gelo, para não apetecer o espírito – e lamentar. Foram necessários 30 reais entre encontrar um posto próximo aberto, comprar o mínimo para chegar em casa 3 horas depois do rotineiro.
Entrei em casa resolvendo se ligava para minha irmã, ou se retomava os planos da embriaguez pálida, por um motivo que poderia ser nada mais que vulgar, estúpido: ela. Não sei quem decidiu primeiro, ou se houve qualquer decisão consensual, mas parece agora que não estava mais dando certo, de uma forma que eu mesmo não compreendo.
Mulher tem sempre a impressão que pequenos gestos insignificantes escondem intenções, mensagens inconscientes, desprezo – tudo negativamente, como depois do amor e dos carinhos e o sono bate, viro de costas para ficar mais confortável; até que entendesse que ela pensava que eu demonstrava alguma coisa ao dar as costas para ela, tive que enfrentar o olhar de desprezo choroso quando acordava por uams 4 ou 5 vezes, então tive que explicar que “estou apenas mudando de lado; não significa que não gosto de você, nem que num plano futuro você ficará sozinha; apenas me viro para me sentir confortável. Você pode se virar, se desejar”. E me forçava a dormir de conchinha pelo simples fato de declarar quase sussurrando que na verdade me desejava.
Nunca entendi porque absolutamente tudo tinha que ter uma explicação com preâmbulo, desenvolvimento, réplica, tréplica e considerações finais (sempre com ela irritada, aos prantos).
Aprendi que algumas das nossas melhores noites começaram com ela me oferecendo uma taça de Cabernet Sauvignon usando um simples vestido de um tecido cujo nome desconheço, que simplesmente pousava sobre sua pele lisa e cheirosa – que eu absorvia loucamente como o poder do absinto só depois que sentávamos e ela esperava que eu contasse sobre o meu dia.
Então quando ela começava a contar sobre o dia dela, eu começava a experimentá-la – o meu antepasto com o vinho. Enquanto ela falava do que tinha feito adicionando os comentários ácidos, típicos dela, mesmo, soltava os femininos e charmosos sobre cheiros, cores e do que agora queria para a casa, eu sheirava seu braço, comentava o cheiro com novo (e eu percebia suas diferenças de cheiros), sempre tão bom; não tão intoxicante quanto o seu próprio cheiro, quando despida de tudo – e do mundo. De seu suor só pude provar poucas vezes, pois não se deixava aproximar a menos que não fosse para ser consumida, ou agraciada com souvenirs do que seria um bom momento depois.
E normalmente era jasmim, almíscar, macadâmia, e enquanto a aspirava e ela fazia sua preleção ou próprio não me sentia mais, deixando a taça de vinho no chão e cheirando, sorvendo, acarinhando, gravando para sempre a mulher que era nada mais que minha; pernas, pés, ancas, seios, pescoço, boca, um conjunto que só tinha tamanho e sagrado significado porque era meu. E ela mesma só tinha me agarrado de vez muito tempo depois que me olhou naquele bar e corrigiu-me um comentário infeliz literário que eu havia feito, há um bom tempo atrás.
Na ocasião sorriu com um canto de boca e simplesmente pagou sua margarita e saiu, com aquele vestido que eu tanto ainda amassaria. Só consegui trazê-la para a minha vida depois de provar que seria um com companheiro para a vida: bom apreciador de casa, de música, de cabeça e mau entendedor da alma feminina. Noutro dia, enquanto tentava explicar porque adorava Ne Me Quitte Pas eu estava absorto nas suas canelas grossas, entre um café e outro, na cafeteria que freqüentávamos próxima a nossos trabalhos, sem nunca termos nos cruzado antes. Eu, advogado, ela escritora. Seria, no mínimo, uma excitante luta de gênios, com diálogos pesados e provavelmente discussões épicas desnorteadoras – que magoariam.
Mas ela se saiu bem, demonstrando um espírito bem forte para alguns aspectos e eu só me apaixonei mesmo da primeira vez em que a trouxe em casa e ofereci o Cabernet que coincidente era o seu preferido.
O tempo com que começamos a sair para casarmos foi de 9 meses e disso independe uma gravidez. Antes eu queria testar minha lenta habilidade de conquistar mulher e ter prazer com minha superioridade viril. Ledo engano. Ela me fez pensar que eu que estava guiando a situação. Primeiro porque eu sou misantropo e ela me abriu os olhos para esse fato. Antes mesmo que terminasse de tirar a mesa daquele prato insípido que eu havia tentado incrementar, já havia começado a reparar suas saliências sob a roupa e ela, que sabia a que guiaria aquele encontro,continuava conversando informalmente e eu agi da forma como tanto tempo depois continuaria sendo o nosso cotidiano – a melhor parte dos meus dias que nem era o orgasmo, era o antes – o cheirar seus braços, seu colo, sua nuca, sentir seus sempre-bons feromônios, sentir os pelos eriçarem com o toque da minha barba malfeita, o subir-descer do seu tórax enquanto suspirava e colocava as pernas por sobre as minhas, enquanto sentados no sofá e conversando despreocupadamente.
A mim nunca foi, de fato, significante, usar uma calcinha vagabunda diferente a cada grande transa. A mim o melhor era beijar o seu pescoço, enquanto sentia o seu corpo perigosamente aderido a mim.
Na verdade ela nunca foi pedante, com ares de superioridade por seu domínio lingüístico – confesso preferir sempre ouvi-la sussurrando no meu ouvido melodiosamente o Ich Liebe Dich enquanto passeava seus dedos sobre minha coluna vertebral. Na verdade eu me enganei ao pensar que as discussões seriam espinhosas.
Ela ERA MINHA, com toda acepção da palavrae eu era dela, com toda a excitação que a possessividade pode trazer. Não era sexo todo dia, mas era a melhor rotina que eu poderia esperar, porque eu dormia sabendo que acordaria com a mesma pessoa que me fizera adormecer, e que me irritava com aquela mania de dormir com três lençóis, o que representava um espaço de não-contato entre nós no começo da noite.Me beijava todo o corpo depois do banho e eu ficava em transe com o aroma que ela mesma deixava em mim dos cabelos estranhamente macios que eu acarinhava até adormecermos.
E tinha aquela insônia irritante que a fazia levantar no meio da noite e sentar na poltrona lendo um livro até cair no sono de novo. E eu ia buscar para a cama aquele conjunto que era o meu perfeito – a minha mulher, da qual eu era.
De manhã, ao acordar me encaminhava automaticamente à cozinha – o cheiro do seu café especificamente me abduzia. Ela tem esse poder de me abduzir e transformar todo o mundo circundante em bruma. Não compreendo. O seu cheiro me consumia perto até do café forte.
Como antes menionei – a melhor rotina que eu poderia esperar. Essa minha necessidade de me fechar no quarto limpo, milimetricamente organizado, climatizado e com aquela presença se tornaram tudo o que o meu mundo conteria. O MEU TUDO.
Mas o pouco dela que me seria suficiente saber estava contido naquele silêncio que pesava muito mais que a minha possessividade e ocupava um espaço maior que aquele meu mundo pudesse comportar- maior que eu.
Não sei quando exatamente ela começou a se sentir sozinha, apesar minha clara presença ao seu lado tentando sempre englobar toda a sua pele, seu perímetro corpóreo, seu cheiro, sua beleza de simplicidade.
Não sei se durante os filmes, ou as refeições, ou sei foi quando o NOSSO silêncio parecia ser o simples significado de rotina e aparente conhecimento e predileção pelo outro ali presente – sem verbalizações. O sentir transcende o verbalizar. Pensava estar sendo sentido.
Mas não sei se para ela tudo isso tinha esse significado de rotina, mas o tinha para mim. Imagino que tenha sentido falta dos planos juvenis de rodar o mundo com a mochila nas costas – duvido que a falta de conhecer novas pessoas, se na sua própria cabeça toda a população mundial já habitava. Ela era todas, o mundo, era um universo - não, continua sendo um astro que exerce inimaginável força gravitacional sobre mim.
Tanto eu poderia ter feito antes se um tão pouco ela tivesse manifestado! Nunca critiquei seu gosto pelo vinho enquanto trabalhava em casa. “É um dos paraísos artificiais”, ela dizia, lembrando Baudelaire.
Penso que minha mania de correção,perfeição e um mundo utopicamente cinza a meu modo deve tê-la sufocado, mea culpa. Ao mesmo tempo, acho que era tudo verdade quando eu dizia que gostava mais dela do que ela de mim, muito embora ela mesma tenha me ensinado que só porque alguém não te ama do jeito como você quer/demanda ou espera em igual medida, não quer dizer que não te ame com todas as forças de que ela dispõe.
E eu sentia a força dela – mas confesso que nem sempre do amor dela. Não sei se porque eu era tão absorto na satisfação do meu mundo que a achei satisfeita e isenta de necessidade de esforços de manutenção.
Comentários
Homem não usa "cristaleira",
Quer dizer, pode até usar, mas não mencionar.
hehehhehe
Mas massa o texto,
Espero voltar mais vezes
=D
O cara pensa!! Isso já está de bom tamanho! rs [brincadeira]
Minha prima querida, senti falta dos seus textos no blog durante todo esse tempo...mas num é que voltou com tudo!??! Esse seu texto está ótimo! Me prendeu do início ao fim!
PARABÉNS!!